Qual o melhor uso para um punhado de trigo, ovos e 8 horas diárias do trabalho de um padeiro? Esses insumos servem à produção de pães, é claro, mas qual será a forma do produto?

Essa pergunta relevante é para o empresário que comprou os ingredientes e paga o salário do funcionário, pois o lucro dele depende da resposta. É relevante também para a sociedade, na medida em que o uso produtivo dos fatores de produção define, em última análise, a riqueza das nações.

O austríaco Friedrich August Hayek ganhou um Nobel discutindo esse assunta e via esta como a questão fundamental da ciência econômica. Na sua visão, uma análise trivial sobre o uso socialmente eficiente dos recursos de uma padaria poderia elucidar a impossibilidade do socialismo e a natureza última dos preços.

Os preços, na descrição hayekiana, são um meio de informação sobre o que a sociedade quer que a padaria produza a partir dos seus ingredientes e funcionários. Os consumidores valorizam diferentes tipos de pães e usam os preços para informar o empresário sobre o assunto. O bom gestor é aquele que, ao interpretar os sinais emitidos através dos preços, os interpreta e garante que a oferta da empresa converse com a demanda da sua clientela.

A diferença entre produzir pão francês e farinha de rosca (pão dormido triturado) é mínima em termos de recursos consumidos no processo de produção. Os preços funcionam como sinais que informam a padaria sobre o melhor uso dos seus recursos. Assim, o gestor pode decidir se é mais adequado vender o pãozinho inteiro ou sob a forma de farinha. E o melhor: a decisão dele está alinhada com as preferências da sociedade, expressas através dos preços, que são meios de informação.

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Os recursos escassos de uma nação são melhor istrados quando preços livres permitem que os empresários apreendam os desejos dos seus clientes. Daí se deriva a impossibilidade prática do socialismo puro: sem propriedade privada, não há preços, gerando um desalinhamento entre os meios de produção e as preferências dos consumidores.

Por isso, experiências socialistas ao redor do planeta nunca conseguiram abolir inteiramente a propriedade privada. Algum sistema de preços sempre existe. Mesmo nesses casos, a descoordenação entre oferta e demanda fica evidente em famosos problemas de abastecimento. Quando um brasileiro se dirige à padaria, ele presume que lá tem pão. Trata-se de um privilégio capitalista, desconhecido por muitos cubanos e soviéticos, acostumados a enfrentar filas sem saber no que vai dar.

O Brasil não é socialista, mas a longe de ter um sistema de preços livres. No exemplo do dilema entre pão francês e farinha de rosca, o empresário brasileiro não poderia se concentrar apenas na interpretação do que sua clientela quer. Ele precisaria observar também as alíquotas do PIS/Cofins. Pão tem isenção, mas farinha de rosca – pão dormido triturado – paga PIS/Cofins.

O assunto foi discutido longamente até que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) chegou a esta conclusão. Quando tratamos produtos iguais como diferentes, o direito assume um espaço que deveria ser da istração de empresas.

Não faltam exemplos do tipo no sistema tributário brasileiro. Produzir estruturas pré-moldadas para a construção civil paga impostos que incidem na indústria e podem chegar ao dobro do que é cobrado de quem constrói a partir do canteiro de obras. Como resultado, uma estrutura de produção pode ser adotada a despeito de ser menos produtiva.

O Brasil é pródigo em distorcer os preços com impostos. Por isso, estamos em 186º de 190 países no ranking tributário do Banco Mundial, e em 100º de 100 países no Índice de Complexidade Tributária.

Esta ideia hayekiana sobre a natureza dos preços livres influenciou pesadamente o princípio da neutralidade tributária, segundo o qual os impostos devem evitar ao máximo qualquer interferência nas decisões do empreendedor. A oferta precisa olhar para a demanda. Quando estudar a lei tributária é mais lucrativo do que analisar a clientela, toda a sociedade fica mais pobre.

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Várias características são esperadas de um bom sistema de impostos. Estou convencido que nenhuma delas é pior que a não-neutralidade brasileira. Pagar impostos de tamanho dinamarquês pode ser ruim, mas viver sob a legislação tributária brasileira é muito pior.

Em resposta a este problema, a proposta de reforma tributária em tramitação na Câmara – PEC 45, formulada pelo economista Bernard Appy, liderada politicamente por Rodrigo Maia e Baleia Rossi – tem como principal objetivo a transformação do sistema tributário brasileiro num dos mais neutros do mundo.

A PEC 45 consiste na união de todos os impostos que hoje incidem sobre bens e serviços. PIS, Cofins, ICMS, ISS e IPI se fundiriam no novo IBS, imposto que teria um detalhe revolucionário: a mesma alíquota para todos os impostos. Pãozinho e farinha de rosca pagam o mesmo. A fábrica de estrutura pré-moldada paga o mesmo que o canteiro de obras.

Apesar do potencial revolucionário que a neutralidade teria no Brasil, seus inimigos não são aqueles que costumam se opor a qualquer regra de bom funcionamento do mercado.

Nos últimos meses, o governador de São Paulo, João Doria, e o seu secretário da Fazenda Henrique Meirelles am o Incentivauto, programa que garante subsídios fiscais ao setor automobilístico. Ao invés de deixar que a produção de carros seja definida pelo quanto o mercado a valoriza, o programa distorce incentivos para privilegiar grandes montadoras.

O mesmo pode ser dito de Arthur "Mamãe Falei" do Val, que recentemente propôs descontos no ICMS para carros comprados por motoristas de aplicativos. Em sua visão, esta é “uma forma liberal de incentivar o emprego e valorizar os aplicativos”. Discordo: é uma forma intervencionista de enfraquecer ainda mais a neutralidade dos nossos impostos. Como trabalhadores de aplicativos não tem uma jornada mínima de trabalho, a fraude se torna interessante. Se a fiscalização for boa, pior ainda: dirigir um Uber de vez em quando pode valer a pena como meio para economizar no ICMS. Pura distorção dos incentivos de mercado, o que pode ser economicamente mais custoso do que alíquotas altas.

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Até Paulo Guedes faz o mesmo no debate da reforma tributária – além de não enxergar a alíquota única como importante, Guedes chegou até a elogiar a guerra de descontos do ICMS que quebra estados e causa distorções de grande escala no setor produtivo.

Nossos liberais, em grande parte, preferem descontos esporádicos em setores selecionados, em detrimento da neutralidade. Defender menores impostos é legítimo, mas é melhor diminuir um pouquinho da alíquota de todos os produtos do que diminuir muito a alíquota de um setor escolhido pelo Estado como vencedor. Poucas mudanças são tão urgentes no debate econômico brasileiro. Tratar iguais como iguais pode até não ser o melhor para quem pensa no lucro político imediato, mas é o único caminho para quem quer que o Brasil dê certo. Enquanto a legislação for mais importante do que o cliente, comprar um legislador vale mais a pena do que agradar ao consumidor. Nesse país tão talentoso na criação de benesses tributárias, precisamos falar mais sério sobre neutralidade. Hayek agradece, a despeito de muitos dos nossos liberais.

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